Filhos, netos, sobrinhos que fintam um triste destino
É livre,
gratuito, com direito a baixa (de maternidade), pode ser feito sob qualquer
pretexto, estende-se do público ao privado, não implica o conhecimento de
ajudas e direitos, pode ser feito repetidamente e pode ainda custar mais do que
um ordenado mínimo.
É assim o
aborto, em Portugal, até às dez semanas de gestação. São, por ano, aos
milhares. São um “direito” protegido pelo Estado português.
Com a
facilidade com que se faz, dir-se-ia mesmo que é dificílimo fintá-lo. É tão
demasiadamente fácil de fazer que, por vezes, não se pode deixar de ficar
surpreendido com quem, tendo todas as razões para fazer um aborto, não o faz.
Chamemos-lhe
Constança*. Era uma rapariga jovem e a sua vida era um mar de asneiras. Os
estudos não a cativavam, e trabalhar também não… Um dia, de uma relação com o
companheiro, surgiu um filho. Ainda na companhia dele, foi vítima de violência
doméstica. E como se a desgraça não fosse suficiente, foi coagida a livrar-se
do indesejado: fazer um aborto.
Nada nem
ninguém ajudaram à esperança daquele filho. Nem companheiro, nem irmãos, nem
pai, nem mãe. (Nem a mãe? Onde estava a sua própria mãe, que, de todos os
corações, era o único que até guardava alguma esperança de receber o seu
primeiro neto? No silêncio, na submissão a um pai que tudo impunha. Cooperou,
um dia, às escondidas, na mala a levar para o hospital e, como mulher de Fé,
desejou, rezou e confiou que tudo, um dia, melhorasse.)
E durante
meses foi a escuridão total: O meu filho não é esperado. O meu filho
não é desejado. O meu filho não foi programado. O meu filho não veio na hora
certa. O meu filho é filho de um deus menor. O meu filho não é nada… O meu filho é
meu filho!
No meio
desta escuridão, da confusão e da solidão, levantou-se apenas uma frincha de
luz: uma amiga que já tinha sido ajudada pela ADAV-Leiria, instituição que
ajuda mulheres grávidas em dificuldades. Fala-lhe desta ajuda, desta única e
derradeira esperança.
E contra
todos, contra tudo o que era previsível, a Constança recusou determinantemente
abortar. O único apoio que teve para avançar com a vida do filho, e a sua!, foi
o da ADAV-Leiria, até no dia do parto. E, depois, na procura de uma casa de
acolhimento (da Cáritas de Coimbra), no primeiro contacto com a família após o
nascimento do bebé, nos outros contactos e em casa (seis meses depois de ter
tido o Duarte*), na inserção do mercado de trabalho, no acompanhamento que
ajudava ao equilíbrio de uma vida nova, difícil.
O avô do
Duarte foi-se rendendo às evidências da ternura das crianças e descobriu uma
nova forma de amar – descobriu-se avô. A Constança endireitou
a vida, ganhou mais juízo, tem ambições, mede prioridades, trabalha arduamente
para poder atingir metas e objetivos com que nunca antes sonhou. O perdão
surge, agora, como a única cura para as feridas abertas do passado. O Duarte
tem, hoje, cinco anos e anima uma família renascida.
Treze anos
após a liberalização do aborto em Portugal, ainda há filhos, netos, sobrinhos
que fintam o triste destino do aborto. Acima de tudo, há filhos, netos,
sobrinhos que são e dão VIDA.
* Baseado
numa história real, mas com nomes fictícios em respeito pela identidade dos
envolvidos.
«Senti que não era capaz de ter o bebé»
Marta é uma
jovem, igual a tantas outras de 23 anos. Fez dois abortos, um antes da
despenalização e outro depois. Contou-nos a sua história, protegendo a
identidade. Este é o seu testemunho em discurso direto:
Tinha 19 anos e estava num relacionamento de cinco anos. Não
era uma relação muito saudável. Comecei com dores de barriga, tipo menstruação.
Nunca suspeitei até que a médica pôs a hipótese de estar grávida. A altura não
podia ter sido pior. O meu avô morreu no mesmo dia. Nessa altura estava grávida
de seis semanas. O meu namorado disse logo: «Sabes o que tens de fazer.»
Fui ao hospital de Santa Maria à consulta da IVG, como eles
dizem. A enfermeira foi simpática e ajudou-me a preencher um questionário sobre
a situação socioeconómica e familiar. Estava a viver sozinha, sem sustento
próprio. Senti que não era capaz de ter o bebé. Não havia outra maneira, senti
muita pressão do meu namorado. Não via outra opção. Eu estava bastante afastada
da Igreja e da minha família. Não estive com nenhum psicólogo nem ninguém me
falou de apoios. Foi tudo muito rápido porque já estava de oito semanas. Agora
pensando nisso gostava de ter descoberto que estava grávida mais tarde…
Fiz a ecografia e a médica disse-me: «Sabe que está de
oito semanas?» Foi rude, mas nem me lembro se vi a ecografia. Vim para casa
pensar durante três dias. Não me lembro de nada desses dias. Na altura estava
com uma depressão que foi diagnosticada só mais tarde.
Passados
esses dias, a enfermeira mandou-me sentar na marquesa. O médico apareceu logo
de seguida, deu-me um comprimido para tomar e outro para tomar dali a x horas e
que aquilo ia doer. Era como se fosse um período normal. Tive de chamar uma
amiga para me ajudar. Não conseguia estar sozinha. Tive dores fortes, são
contrações, e hemorragias grandes. Sozinha era bem possível que tivesse
desmaiado.
Agora tenho
uma ideia mais amadurecida do que na altura e sei que se tivesse falado com
alguns familiares e amigos tudo teria sido diferente e poderia ter avançado…
Durante algum tempo enterrei o assunto. Foi como se não
tivesse acontecido nada. Foi como um anestésico em todo o assunto. Eu não
tocava no assunto e ninguém à minha volta tocava no assunto. Só quando comecei
a ir a um grupo de jovens é que tudo veio à tona. Foi um choque. Não me
conseguia perdoar. Já me tinha confessado e mesmo assim era uma coisa que me
pesava e que me magoava. (...)
Estou em
processo de pacificação. Está muito melhor, mas em processo. Lembro-me com mais
carinho do dia em que descobri que estava grávida. É um bocadinho difícil
dizer… são dois… filhas ou filhos.
O primeiro
aborto que fiz tinha 16 anos. O comprimido era exatamente o mesmo. É o que me
lembro: o comprimido era igualzinho. É a coisa de que melhor me recordo. Nessa
altura estive mais tempo em casa, porque era mais miúda e o meu pai não queria
que ninguém soubesse.
Quando fui fazer o segundo não pensei no primeiro. Já tinham
passado três anos e já estava afastada da Igreja há muito tempo. Tinha
adormecido os valores que tinha. Não sei bem explicar. É como se fechasse a
minha vida num baú a sete chaves e “fica aí quietinho”.
Eu estava
muito perdida. Não o queria fazer, mas não tinha nada a dizer porque tinha só
16 anos. O meu namorado fez uma cena horrível e o meu pai disse que o melhor a
fazer era abortar, o que para mim foi um choque porque ia contra tudo aquilo
que ele me tinha ensinado e todos os valores que a minha família tinha. Tentei
confessar-me, mas apanhei o padre desprevenido e não reagiu da melhor maneira.
Aquilo assustou-se e acabou por levar a um afastamento. Acabei por esconder
memórias e quando fui fazer o segundo quase nem pensei no primeiro, porque
estava bastante enterrado.
Quando
voltou tudo, voltou também este primeiro. Foi um embate jeitoso.
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